fonte: MedScape
A quantidade de exames feitos por pessoa vem crescendo a cada ano no Brasil. Conforme os registros da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o número total de exames e procedimentos realizados por beneficiários de planos de saúde alcançou quase 1,1 bilhão no país só em 2022.
Nesse mesmo ano, cada beneficiário realizou cerca de 22,2 exames, média que foi superior à registrada nos anos anteriores (20,6 em 2021; 16,5 em 2020; e 19,8 em 2019). Os números chamam a atenção e levam a um questionamento: será que todos esses exames são, de fato, necessários?
Dados do Ministério da Saúde apontam para a mesma direção. Entre janeiro de 2022 e novembro de 2023, foram realizados mais de 76 milhões de exames de urina no país (análises de caracteres físicos, elementos e sedimentos). No mesmo período, foram feitas mais de 17 milhões de radiografias de tórax póstero-anterior. As informações foram reunidas a partir da Base de Dados do Sistema de Informações Ambulatoriais de Saúde (SIASUS/DATASUS) pela assessoria de imprensa do Ministério a pedido do Medscape.
Os dados
Segundo o relatório de 2022 “SUS: avaliação da eficiência do gasto público em saúde”, elaborado em conjunto por Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), enquanto em 2016 a ANS registrou uma taxa de 149 ressonâncias magnéticas a cada 1.000 habitantes na saúde suplementar, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) contabilizaram 52 exames a cada 1.000 pessoas em 2013.
Passando para um contexto mais específico, os números também saltam aos olhos. Um estudo publicado no final de 2023 na Revista da Associação Médica Brasileira [4] mostra que o excesso de exames e de consultas é uma realidade mesmo em serviços especializados.
A análise retrospectiva, que avaliou os registros de 60 pacientes com câncer de mama tratadas em 2018 no Departamento de Oncologia do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) identificou que, durante o acompanhamento, foram realizadas 125 consultas excedentes (33,6%). Nesse período, houve ainda a realização de 111 exames excedentes, representando um aumento de 100,9%. No primeiro ano de acompanhamento, 18 pacientes foram submetidas a 423 exames laboratoriais; já no segundo ano foram realizados 229 exames em 14 pacientes.
O Dr. Daniel Cubero, médico oncologista, professor na FMABC e um dos autores do estudo em tela, contou ao Medscape que a pesquisa publicada no final de 2023 faz parte de uma série de estudos que o grupo vem fazendo para avaliar o desperdício de recursos na medicina nos últimos anos. A ideia do trabalho, segundo o médico, foi fazer uma autocrítica e encontrar oportunidades de melhora que já vêm sendo trabalhadas na instituição.
Segundo o pesquisador, os exames desnecessários identificados na pesquisa tiveram diferentes origens. No caso dos de imagem, o destaque foi o conjunto de exames de estadiamento. “Esses exames não devem ser feitos em todas as pacientes, só naquelas que têm certo risco de a doença efetivamente já ter se disseminado. Então, para os estágios clínicos iniciais (I e II), por exemplo, a literatura médica diz que não é necessário fazer esses testes”, destacou.
Outra parte dos excessos esteve relacionada aos exames de prevenção. Houve, por exemplo, ultrassonografias e mamografias que foram realizadas em intervalos menores do que o preconizado pelas diretrizes nacionais e internacionais. “Não existe justificativa clara para repetir a mamografia a cada seis meses. Ela poderia ser feita depois de um ano”, ressaltou.
Os excessos também foram evidentes em exames laboratoriais. “Para uma mulher em acompanhamento de câncer de mama, não há necessidade de pedir uma série de exames de sangue; aliás, quase não se pede exames de sangue nesses casos. Os que pedimos são muito específicos para determinadas situações. Mulheres recebendo certos tipos de hormonioterapia precisam dosar, por exemplo, colesterol a cada seis meses, mas, nesse grupo de pacientes, observamos uma recorrência de pedidos de exames de sangue sem justificativa clara no prontuário”, destacou o Dr. Daniel.
Custos e fatores associados
Para o Dr. Daniel, um dos fatores que justifica os resultados observados é o fato de a mulher com câncer de mama ser consultada por mais de um médico — que, muitas vezes, não conversam entre si. “Uma mulher que precisa de avaliação a cada três meses poderia muito bem intercalar consultas entre o oncologista e o mastologista, em vez de ser examinada por ambos de três em três meses”, destacou.
Outro aspecto que impulsiona o excesso de exames, segundo o especialista, é a tentativa dos profissionais de contornar problemas do sistema de saúde, tal como atrasos e dificuldade de agendamento de exames. “O profissional pede exames antecipadamente, ‘peca pelo excesso’. Mas, na verdade, ao fazer isso, ele acaba congestionando o sistema”, ponderou.
O médico lembrou ainda que os pacientes também são parte do problema, uma vez que muitos consideram que um bom atendimento está associado a um número maior de pedidos de exame. “Temos que revisar essa questão de desperdício de uma maneira muito ampla, porque, seja no Sistema Único de Saúde (SUS) ou na medicina privada, quem paga a conta somos todos nós”, afirmou, lembrando que, além de custos, os exames oferecem riscos. “Quando se faz um exame que não era necessário, há o risco inerente ao próprio procedimento, o risco de algo sair errado, como também outro risco que as pessoas não percebem: o de encontrar alterações sem nenhuma relevância clínica e que vão gerar uma sucessão de eventos, como novos exames, novas investigações fúteis, o que chamamos de iatrogenias”, destacou.
Envelhecimento da população e despreparo profissional
Para o Dr. Carlos Henrique Mascarenhas Silva, diretor de defesa profissional na Associação Médica Brasileira (AMB), do ponto de vista de modelo assistencial, o aumento do número de exames é algo incontrolável e está associado a vários fatores. “No mundo inteiro, o custo da saúde, como um todo, vem aumentando ano a ano”, pontuou.
Além de as pessoas estarem vivendo mais, o que demanda mais do sistema de saúde e também resulta em mais exames, o médico lembrou que, atualmente, as pessoas têm mais consciência da sua saúde. “Isso faz com que os médicos sejam mais procurados e que, por isso mesmo, eles peçam mais exames. Numa pessoa saudável, a amplitude do que eu preciso procurar é muito maior do que quando existe um direcionamento para um diagnóstico”, destacou o Dr. Carlos Henrique em entrevista ao Medscape.
Um segundo aspecto, segundo o especialista, é que existe uma vasta gama de exames disponíveis. “A ressonância não substituiu a tomografia e não substituiu a ultrassonografia ou o raio-x e o PET-Scan não substituiu a tomografia, você faz vídeos de forma seriada. Então a gama e a disponibilidade de novos exames só aumenta”, pontuou.
Somado a esses fatores, o Dr. Carlos alertou que existe ainda um problema: a crescente inserção de profissionais despreparados no mercado de trabalho. “As entidades médicas no Brasil inteiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM), a AMB e a Federação Nacional dos Médicos têm alertado a população e os governos ao longo dos últimos 10 anos sobre o absurdo que vem sendo feito no ensino médico no Brasil, que é a abertura de novas escolas de medicina sem qualquer critério”, disse, lembrando que muitas instituições têm formado profissionais que treinam apenas em maquetes e robôs, sem contato direto com pacientes reais. Isso, de acordo com o diretor da AMB, resulta em profissionais despreparados.
“O que a pessoa despreparada faz? Tenta se resguardar, aumentando a gama de coisas que pede para ver se acerta o diagnóstico. Esse, na minha opinião, não é o principal motivo para ter muitos exames pedidos no Brasil, mas pode ser um contribuidor — e vai piorar no futuro”, ressaltou.